1º Colóquio sobre HUMANIDADES MÉDICAS/FAMED-UFC/UNIFOR

Sábado, 26 de outubro/2013, das 8h30 às 15h30
Local: Auditório da SOCEP (Sociedade Cearense de Pediatria. Rua Maria Tomásia, 701. Aldeota. Fone: 3261-5849)
O I Colóquio sobre Humanidades Médicas é um evento organizado pelo Grupo HumanAmigos de Humanidades Médicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará em parceria com a Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Participam também da iniciativa: o Núcleo de Ensino, Assistência e Pesquisa da Infância do Departamento de Saúde Materno-Infantil-FAMED/UFC; o Projeto de Vivência da Relação Médico-Paciente (PROVIMP); o Núcleo de Desenvolvimento da Educação Médica (NUDEM); Instituto da Primeira Infância (IPREDE) e o Núcleo de Tecnologias e Educação a Distância em Saúde (NUTEDS).
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domingo, 10 de novembro de 2013

A cura pela palavra: um voo para além do silêncio e solidão


Ermelinda Ferreira

Gostaria de começar a minha palestra com o poema de Ferreira Gullar, Traduzir-se, que fala da complexidade do ser humano e da sua necessidade de comunicação com o outro: 




Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo./Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão./Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira./Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta./Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente./Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem./Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?

Ferreira Gullar

A árvore vermelha, Shaun Tan

Numa época em que a ciência torna-se cada vez mais mecanizada e a relação médico-paciente cada vez mais desumanizada, alguns profissionais vêm investindo na defesa da anamnese – a narrativa médica que traduz as queixas de um paciente – como um expediente dos mais econômicos e eficientes para a prática clínica.
Em seu livro Todo paciente tem uma história para contar, Lisa Sanders considera que a história clínica muitas vezes é o melhor lugar para se encontrar a pista sobre determinado caso. Diz ela: “é a nossa mais antiga ferramenta diagnóstica e também uma das mais confiáveis. De fato, cerca de 70% a 90% dos diagnósticos são feitos com base apenas na história do paciente”. Esta eficácia esbarra, contudo, no atual modelo do interrogatório da anamnese que, ao adotar pressupostos generalistas sobre os sintomas de determinadas doenças, direciona-se mais à confirmação ou não das expectativas prévias do médico do que a um questionamento verdadeiramente investigativo.
A falta de treinamento, o reduzido tempo de consulta, o desconforto com as emoções das pessoas são algumas das causas apontadas por Sanders para a tendência dos profissionais de buscar “apenas os fatos” durante a entrevista, interrompendo-a frequentemente. Segundo ela, em gravações de atendimentos médicos constatou-se que a descrição inicial dos sintomas pelo paciente foi interrompida em mais de 75% das consultas. O estudo indicava que os médicos escutavam os pacientes, em média, durante 16 segundos antes de interromper, e alguns interrompiam a fala do paciente em apenas 3 segundos. Uma vez suspendida a história, menos de 2% dos pacientes a retomavam, e nenhum deles chegava a completá-la.
Arthur W. Frank, em seu livro O contador de histórias ferido – corpo, doença e ética, além de constatar o descompasso entre os avanços científicos e tecnológicos da contemporaneidade e os discursos que sustentam o pensamento pós-moderno e pós-colonialista na defesa da necessidade de expressão da pessoa humana – denunciando situações de sua sujeição aos discursos de poder oficiais e institucionais –, identifica na prática de contar histórias de sofrimento uma “ação moral”, considerando extremamente relevantes os testemunhos de sujeitos individuais, não como matéria para a construção de um “caso clínico” – objeto da investigação profissional –, mas como relatos reveladores do papel que a doença efetivamente exerceu em suas vidas.  
A “medicina narrativa” emergiu, segundo Rita Charon, em resposta a um sistema de saúde que muitas vezes suplanta as necessidades do paciente através de conceitos e interesses corporativos e burocráticos, gerando no sujeito já fragilizado um sentimento de desamparo, solidão e abandono, incompatível com os resultados práticos que os recursos científicos atualmente disponíveis já são capazes de proporcionar em termos de cura ou de alívio para os males do corpo. Em seu livro, ela descreve a “Medicina Narrativa” como uma atividade destinada à formação de profissionais mais competentes para reconhecer, interpretar e reagir com empatia às narrativas dos doentes, utilizando para isso recursos que vai buscar à teoria da literatura – como a compreensão da complexidade temporal dos eventos clínicos e o estabelecimento de conexões textuais através da metáfora e da linguagem figurada –, acreditando que o incentivo à construção de uma genuína relação médico-paciente pode conduzir a uma prática clínica, além de eficiente, mais ética e humanizada.
A literatura sempre foi generosa na elaboração de retratos de médicos e doentes, bem como de relatos autobiográficos de sofrimentos físicos, mentais e espirituais. Há quem diga, inclusive, que só escreve aquele que sofre, constituindo os textos uma espécie de espelho da alma, cuja eficiência em “dizer” já contribui para o conforto e o alívio de seu autor.
Uma das mais belas histórias que ilustram a pertinência da defesa da “medicina narrativa” pode ser encontrada na obra de Jean-Dominique Bauby, de 1997, vertida para o cinema dez anos depois pelo cineasta e artista plástico Julian Schabel: O Escafandro e a Borboleta – verdadeiro ato de tradução do espírito na palavra, que redimensiona a arte, como no poema de Ferreira Gullar, de uma convenção ou prática diletante para o seu papel salvacionista: uma “questão de vida ou morte”. O filme é interessante porque foi todo narrado do ponto de vista do paciente, a quem raramente vemos. Com este recurso, o diretor conseguiu estabelecer uma inevitável empatia do público com o personagem, pondo o expectador no lugar da vítima, ouvindo os seus pensamentos que ninguém mais ouve, e vendo apenas o que ele é capaz de enxergar através de um único olho.
Nascido em 1952, Jean-Dominique Bauby era um jovem feliz e realizado, com dois filhos, redator-chefe da revista Elle, quando aos 43 anos sofreu um acidente vascular cerebral que o aprisionou nos limites de um corpo com todas as funções motoras deterioradas. Inerte e isolado neste “escafandro”, sem esperança de recuperação, ele descobriu – com a decisiva ajuda de sua dedicada fisioterapeuta – um caminho para fora de si mesmo. Juntos, eles elaboraram lentamente um código gestual, baseado nas piscadelas de seu olho esquerdo – o único vínculo que podia estabelecer com o mundo –, e conseguiram escrever um livro inesquecível, comovente e devastador na intensidade de sua verdade humana.

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Esta obra nos levanta questões importantes sobre a natureza da saúde e da doença, e sobre a própria natureza humana, que, na visão do poeta Ferreira Gullar, é muito mais do que nos informam os dados do nosso corpo físico, atingindo dimensões que só a arte, talvez, consegue captar. Mesmo quando a ciência ainda não pode intervir, a arte é capaz de oferecer meios que podemos entender como “terapêuticos” e eficazes, se pensarmos que a “cura” não significa apenas, como mostra Georges Canguilhem em sua obra O normal e o patológico, o retorno a um qualquer hipotético estado de higidez, tão variável e impreciso quanto são arbitrários e programáticos os critérios da “normalidade” em Medicina –, mas à adaptação produtiva do ser a uma nova situação que o acomete, sem demérito de sua identidade, permitindo a sua mais ampla expressão possível no contexto social e a satisfação de suas demandas intelectuais e afetivas específicas nos limites desta nova realidade.
Uma realidade que pode, algumas vezes, demandar do profissional de saúde um entendimento mais aprofundado sobre a quem cabe o direito de escolha entre a vida e a morte, se ao médico, se ao paciente; quais as implicações envolvidas nesta decisão e qual a melhor forma de lidar com situações tão difíceis como as que envolvem opções tão extremas. Consideramos aqui a cena do filme que retrata a vulnerabilidade da fisioterapeuta ao lidar com a morte – apesar deste evento fazer parte do seu cotidiano de trabalho. Observamos a dificuldade enfrentada pela cuidadora em admitir esta hipótese proposta pelo paciente, que acaba momentaneamente agredido pela incompreensão e revolta da jovem.

A necessidade de se respeitar ou não, visando ao bem do outro, a escolha de pacientes sem perspectiva de cura ou de alívio do sofrimento, nos faz pensar na demanda por uma formação mais ampla e filosoficamente embasada para o profissional de saúde, a fim de fornecer instrumentos para que possa lidar da melhor maneira possível com decisões tão difíceis, sem incorrer na apropriação dos corpos e das vontades alheias. Isto evitaria o sequestro dos indivíduos e o cerceamento de sua liberdade diante da tragédia pessoal que os acomete, o que às vezes ocorre mediante a justificativa da autoridade que é conferida à ciência em nossa sociedade. Trata-se de um aspecto muito difícil, que envolve variantes diversas e problemáticas, mas que não pode, por isso mesmo, ser relegado na formação em saúde.

Para concluir, gostaríamos de refletir que a “cura”, neste “caso clínico” desenganado pela medicina, atingiu uma dimensão verdadeiramente poética, que não teria sido possível sem a correspondência paciente e solidária dos médicos e fisioterapeutas, e sem a força interior e o desejo de superação do ser aprisionado nos limites de um corpo vitimado pelo acidente vascular cerebral. A experiência, em lugar de ser vivida em completo desespero, foi transformada pelo milagre da palavra na razão mesma da existência deste homem, cujo sonho sempre fora escrever um livro. A doença, neste caso, representou a ponte que forneceu o material para uma narrativa que, de nenhum outro modo, teria atingido a dimensão, a eloquência e a validade que alcançou, em sua qualidade de incomum e rara anamnese.

Uma anamnese que, sem deixar de ser clínica, buscou investigar no ser em sofrimento algo além da materialidade de seu invólucro carnal, a “parte que se sabe de repente” de que fala o poeta Gullar. Desacreditado pela ciência, o homem em seu escafandro, vitimado pela síndrome do encarceramento (locked-in syndrome) seria, numa conduta habitual, considerado inválido e esquecido, um corpo imprestável para a vida. Numa perspectiva clínica mais ampla, com o suporte de uma equipe interdisciplinar treinada e habilitada a ouvir o paciente numa dimensão rara e incomum na prática atual, este homem que se conservava lúcido, atento e perceptivo, e que ainda sobreviveu nestas condições por vários meses, foi resgatado de seu cárcere corpóreo e pôde desfrutar de trocas afetivas com seus parentes e amigos, chegando inclusive a realizar o sonho de sua vida, com a publicação de seu livro. 

Suas últimas palavras atingem o objetivo almejado por todos nós, sejamos saudáveis ou doentes; médicos ou poetas – a alegria de viver, ainda que provisoriamente, ainda que contingentemente, a esperança da redenção:

Com os cotovelos sobre a mesa rolante de fórmica que lhe serve de escrivaninha, Claude relê estes textos que vimos extraindo pacientemente do vazio todas as tardes, há dois meses. Sinto prazer em rever certas páginas. Já outras nos decepcionam. Juntando tudo dá um livro? ... Pelo zíper aberto da bolsinha, percebo uma chave de hotel, um bilhete de metrô e uma nota de cem francos dobrada em quatro, como se fossem objetos trazidos por uma sonda espacial enviada à Terra para estudar os tipos de habitat, de transporte e de troca comercial em vigor entre os terráqueos. Esse espetáculo me deixa desamparado e pensativo. Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar meu escafandro? Alguma linha de metrô sem ponto final? Alguma moeda suficientemente forte para resgatar minha liberdade? É preciso procurar em outro lugar. É para lá que vou.

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